Talento do Brasil

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Daniela Pegoraro

Fabrício Boliveira é vilão de novela, protagonista de cinema e representa o brasileiro que precisa ser visto

Ao ligar a televisão no período da noite, quem brilha na novela Segundo Sol, da Rede Globo, é o vilão Roberval. Sério e vingativo, pouco tem em comum com o ator que lhe dá vida. Fabrício Boliveira é divertido, alegre e despojado. Nasceu no mesmo local em que a trama da novela é apresentada: em Salvador, na Bahia. Foi justamente por esta ambientação e o fato de o elenco ser majoritariamente branco que movimentos negros entraram com processo contra a rede televisiva.

A Unegro (União de Negros pela Igualdade) alegou que cerca de 76% da população baiana é composta por autodeclarados negros ou pardos, e cobrou mudanças que reproduzam a diversidade étnica do local. Deste modo, Fabrício vem com força para retratar uma população que não se enxergava na TV. “Foi o olhar de uma luta que acontece há muito tempo minha, de amigos, irmãos, e agora virou uma preocupação geral. Estamos abrindo discussão, tendo de rever onde estão os negros deste País sendo representados dentro da televisão”, reflete o ator em entrevista à Dia-a-Dia.

A questão de raça dentro do mundo do teatro e televisivo, para Boliveira, está avançando. “Para o artista negro é sempre mais delicado. Não se tem tantas possibilidades de personagens, sempre vem limitado a ser adjetivado pela cor e ainda é instituído um lugar social específico e um serviço por conta disso”, diz. Ele relembra que, no começo de sua carreira, era difícil apontar contrariedades racistas nos roteiros. Junto ao nome e característica de seu personagem, o 'negro' vinha especificado como um adjetivo. “Não fazia sentido. Por que não vinha escrito ‘branco’ para os personagens dessa cor? Ou deixa para todo mundo ou tira”, complementa. Foi justamente essa criticidade de Boliveira que o levou hoje a ter um filtro de escolha sobre seus trabalhos. Procura sempre fugir do personagem estereotipado, do olhar social vicioso. “Isso me fez caminhar por lugares mais interessantes”, revela o artista.

Atualmente, enxerga que as mudanças são grandiosas e que estão por fazer toda a diferença. “As pessoas hoje se preocupam em como elas estão representando os negros nos seus filmes. Elisa Lucinda e Mariana Nunes, duas atrizes que admiro muito, por exemplo, já me contaram que estão sendo contratadas para projetos dos quais elas nem participam, somente para avaliar o roteiro”, revela Boliveira. Com o olhar de um homem negro da Bahia, ele enxerga a importância de toda essa representatividade que leva às telas do cinema e da televisão. “Meu brilho no olhar, quando novo, era pelo Michael Jackson. Era muito louco eu, Fabrício, baiano e criança, não ter nunca visto na minha vida o Itamar Assumpção e, hoje adulto, tê-lo como referência. Tem algo que poderia ter me aproximado muito mais do País e das minhas condições e não ficar me imaginando no possível exemplo norte-americano”, relembra.

Itamar Assumpção (1949 – 2003) foi compositor, poeta, cantor e instrumentista brasileiro. Integrou a chamada Vanguarda Paulistana, movimento dos anos 1970 e 1980, quando se destacaram produções independentes e experimentais. “Existe um lugar em que as pessoas precisam se ver representadas. Tem de se ver o baixo, o gordo, o deficiente, o negro, a mulher, o japonês, o branco, todo mundo. O País é composto por essas diferenças. Não cabe mais a gente tentar impôr um estereótipo norte-americano, de mulheres louras com olhos azuis”, acrescenta Boliveira.

PAIXÃO ARTÍSTICA

A aptidão e vontade pela atuação vêm desde que Fabrício, 36, assistia a peças e tinha experiências do tipo na escola. Cursou teatro pela primeira vez aos 15, mesma idade em que lecionou Matemática e História para os mais novos. Chegou a ser recenseador do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e deu até aulas de dança de swing baiano. “Tinha uma namorada muito insistente que falava que eu deveria ser ator. Na época, pensava em cursar Direito e ela dizia o tempo inteiro: ‘Você é ator, cara’.”

Ele começou no ofício ainda em Salvador. Na televisão, trabalhava mais com comerciais e publicidade. “Virei o garoto-propaganda do Estado na época”, comenta. No entanto, seu desejo e sua formação eram voltados para a dramaturgia. Cursou por quatro anos Artes Cênicas na UFBA (Universidade Federal da Bahia). Não chegou a concluir a faculdade, visto que recebeu proposta de integrar o elenco da novela Sinhá Moça quando ainda tinha 24 anos e passou a morar no Rio de Janeiro.

“Minha cabeça já estava imersa nesse universo. Não me formei porque quando chegou o convite eu já estava angustiado, querendo desistir do curso”, relembra o ator. Boliveira conta que já trabalhava, mas pensava ainda em fazer Direito. “Gostava muito de história e queria uma profissão que me desse algum retorno financeiro. De algum jeito, era uma preocupação minha. Sempre trabalhei, desde os 15. Não poderia fazer uma atividade em que meus pais me sustentariam”. Ser independente, para ele, é de grande importância na vida. “É engraçado essa relação de dependência em algum lugar, seja no financeiro ou não”, completa.

Não se arrepende, no entanto, de sua decisão de continuar com as artes cênicas e hoje percebe que o retorno com a atuação é, em suas palavras, “mais interessante do que talvez seria como advogado”. Mesmo assim, às vezes, se sente decepcionado com a profissão. “Tem muito desrespeito, muita ignorância quanto à imersão nas obras”, comenta. Ele ainda conta que, pelo apreço que possui por cozinhar, chega a cogitar a possibilidade de abrir um restaurante ou trabalhar com performances. “Acredito que a arte é algo com a qual vou viver sempre, então vai estar em tudo que fizer. Até, talvez, se fosse um advogado que combinasse bem as coisas e brincasse com isso”, reflete.

Não é apenas a atuação que reflete sua alma artística. Atualmente, Boliveira também faz parte de um grupo de dança do Piauí, o Demolition Incorporada. O espetáculo em que participa se chama Batucada, performance realizada normalmente em locais precários, como balcões. São 15 integrantes do grupo, que viaja para diferentes cidades e Estados. Lá, trabalha durante uma semana com outras 40 pessoas locais. “A intervenção acontece com uma máscara de Carnaval, uma panela, um pedaço de pau na mão e todos pelados. É uma performance delicada, em que as pessoas se expõem bastante. Ninguém mostra o rosto, então existe uma discussão de espaço, privacidade, respeito e limite do outro”, explica o artista.

Mas, ainda quanto à atuação, Boliveira acredita que tem muito a mostrar. Além de sua participação na novela Segundo Sol e trabalhos como o bombeiro Marco Antônio, na série 13 Dias Longe do Sol, e o emblemático João de Santo Cristo no filme Faroeste Caboclo, ele faz parte de quatro lançamentos em longas-metragens: Tungstênio estreou em 21 de junho. Dirigido por Heitor Dalla, traz Fabrício como um policial fora da lei; em Além do Homem, de Willy Biondani, também em cartaz, o ator interpreta o personagem Tião, trazendo a clássica imagem do homem brasileiro em todo seu humor; ao lado de Isis Valverde e Leandro Hassum, Boliveira dá vida a Wilson Simonal em longa que retrata sua carreira. Dirigido por Leonardo Domingues, Simonal ainda não tem data marcada para estreia; a ator ainda faz participação no filme Miragens, de Erick Rocha, previsto para ser lançado em 2019. Haja fôlego!

 




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