Anjos insuspeitos

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Daniela Pegoraro - Especial para o Diário & Vinícius Castelli

 
Em algum momento da vida você já dependeu da ajuda de alguém? Ou já se viu na situação de ter a felicidade do outro em suas mãos? A sensação é indescritível, dizem. É possível que aconteça algo despretensioso, seja dentro da família, com amigos que enfrentam problemas pessoais ou até mesmo na rua, quando há a possibilidade de mudar o dia de alguém, ainda que desconhecido. Pode ser algo que tome alguns segundos, como ajudar idosos a atravessar a rua – ainda mais quando, em contraposição a tanto ato de gentileza, são poucos os motoristas que respeitam a faixa de pedestres. No entanto, as ações também podem ser pensadas, programadas, como as de quem sai pela cidade a fim de distribuir comida e cobertor, dar as mãos para quem precisa de apoio, emprestar um pouco de si e do seu tempo.
 
As possibilidades são infinitas e o andreense Celso Finatelli, 57, que trabalha como encarregado de logística, viveu experiência para lá de gratificante no início dos anos 1990. À época tinha cerca de 32 anos. Costumava, durante todo fim de tarde nos dias de verão, apreciar o pôr do Sol em frente à casa onde vivia. Os raios de luz passando entre as árvores coloria todo o céu. Era um espetáculo, como bem se lembra.
 
Em uma tarde em especial, ele notou algo diferente. Viu do outro lado da rua alguém que clamava por ajuda. “Percebi que se tratava de uma pessoa com deficiência visual”, diz. Era Alberto, um senhor na casa dos 40 anos que parecia não ter ideia de onde se encontrava. Com bengala e óculos escuros, contou que havia se perdido de onde estava. “Me falou o endereço e respondi: ‘O senhor está a pelo menos dois quilômetros de distância de lá’. Ele ficou muito preocupado e com medo”, relembra Finatelli, que no mesmo momento se prontificou a ajudar Alberto.
 
Foi quando decidiu colocar a mão em seu braço e guiá-lo até seu destino. Durante o caminho foram conversando. Alberto pediu que Finatelli o deixasse a alguns metros do portão, pois estava com vergonha de ter se perdido. “Disse a ele para não se preocupar e o deixei na calçada do local. Ele me agradeceu muito e lhe desejei boa sorte. Notei que, quando voltava para casa, me sentia muito bem, mais leve e feliz em ter ajudado de alguma forma aquela pessoa. Foi muito pouco ou quase nada o que fiz, mas esse pequeno gesto me fez uma pessoa melhor.”
 
Como no caso de Finatelli, um ato de gentileza tem consequências para além da pessoa ajudada. Aquele que estende as mãos também se sente atingido pelo próprio ato. “Alegria, aumento de potência, paz e tranquilidade. Gentileza é a arte da paz, etimologicamente. Para quem pratica e para quem recebe”, explica o professor e jornalista Clóvis de Barros Filho, que, se aprofundando mais sobre o assunto, lançou recentemente o livro Shinsetsu – O Poder da Gentileza. “Praticar a gentileza significa colocar o bem-estar do outro como critério da ação. Considerar que tudo o que fazemos afeta nosso entorno e buscar a cada instante fazer do mundo um lugar melhor, com convivência mais harmônica”, acrescenta.
 
Exemplos de quem faz questão de praticar o bem são o estudante andreense de Veterinária Rafael Marim, 33, e sua noiva, a esteticista Katia Sousa, 31. Juntos, reservam parte do tempo e dinheiro para, uma vez por semana, preparar marmitex, separar roupas e livros para distribuir a quem precisa. Abraços também não faltam. São apenas os dois, sem patrocínio, sem ONGs e ajuda de mais ninguém. Embarcam no carro em uma jornada sem destino e seguem adiante. Há cerca de um ano, viveram situação em particular que os marcou. “Era dia de muito frio, estávamos fazendo doações e fizemos uma parada perto da estação de trem, em Mauá. Lá, havia um jovem de 19 anos”, relembra o veterinário. O sujeito havia chegado à região há poucos dias para tentar vida melhor após perder sua mãe, na Bahia. “Estava de bermuda, camiseta e chinelo. Nos abraçou e começou a chorar. Falou que ninguém o quis ajudar e tinha certeza que morreria de frio naquela noite. Isso me derrubou”, conta Marim.
 
Naquele momento, o casal não teve dúvidas. Pegou calça e blusa que servissem no rapaz e deram a ele. Marim tirou suas meias e tênis e deu também. Durante esse meio-tempo foram conversando e o rapaz contou da dificuldade em arrumar emprego, principalmente quando sequer conhecia alguém na cidade. O andreense 'matutou' sobre diálogo até a volta para casa. Colocou na cabeça que precisava ajudar mais. “Conversei com um amigo que tinha uma oficina de funilaria e ele me disse que poderia empregar o rapaz e deixá-lo dormir no local por um tempo. Voltei para procurá-lo, mas nunca mais o encontrei. Isso está na nossa cabeça há tempos. Sabemos que não podemos mudar o mundo, mas a gente sabe que no dia em que saímos de casa podemos transformar a vida de uma pessoa. Isso já é começar uma boa mudança.”
 
Há casos, como o de Marim, de quem se envolva emocionalmente com a história do outro e sofra com aquilo, sinta pena ou impotência por não poder ajudar mais, como explica a psicóloga Luísa Chiocheti. Para promover a gentileza, a profissional acredita que, antes de qualquer coisa, deve existir empatia. A partir do momento em que alguém se coloca no lugar do outro e decide ajudar, a pessoa tende a sentir conforto emocional, de estar contribuindo com o mundo. Ela ainda pontua que, para quem ajuda o próximo financeiramente, com doações, trabalho voluntário ou em situações cotidianas espontâneas, provavelmente haverá o sentimento de dever cumprido, de felicidade por ter feito algo bom. “Quem sabe o desejo de ajudar novamente e a diminuição de uma possível culpa?”, elucida. “Algumas pessoas se sentem privilegiadas por estar em posição favorecida diante do outro e se sentem melhor quando podem ajudar”, acrescenta.
 
Moradora de São Bernardo, a professora e empresária Katia Regiane, 41, também vivenciou algumas experiências. Entre elas a de quando recebia cestas básicas nas escolas em que trabalhava. “Estava com uma das cestas no Centro de São Caetano, nos dias em que pegava carona”, conta. Enquanto esperava seu irmão chegar, pois doava alimentos para ele, uma moça ofereceu doces dizendo que precisava vendê-los para comprar comida para os filhos e que estava sem alimentos em casa naquele momento. “Ela disse que precisava de quase tudo.” Katia abriu a sacola onde estava a cesta básica e disse para a mulher pegar o que precisasse para a família dela. “Ela começou a chorar e a me agradecer”, recorda-se. “No início, ficou receosa em levar (os alimentos), disse que a cesta era minha e que não seria justo. Respondi que doaria para quem precisava mais. Ela me agradeceu muito, com os olhos cheios de lágrimas.” Naquele momento Katia não teve ideia da diferença que havia feito na vida daquela mulher e de sua família, mas depois de uns minutos caiu em si. “Fiquei emocionada com o que aconteceu e também comecei a chorar. Às vezes, não temos a dimensão do que é ajudar alguém ou se colocar no lugar do outro e saber das dores dele. Às vezes, falta empatia.”
 
EXEMPLO INCENTIVA
São essas as atitudes que criam correntes do bem. É possível que muitas pessoas queiram ajudar e acabam não sabendo por onde começar ou o que fazer exatamente. “Ao ver alguém promovendo algo parecido com o que gostaria de fazer, fica mais fácil de se engajar na causa. Há também histórias de pessoas que foram incentivadas e saíram de situações difíceis, e fizeram deste exemplo pessoal uma meta de vida: ajudar outros assim como um dia receberam ajuda. Quando alguém acolhe, o sentimento de gratidão pode ser revertido no desejo de fazer a diferença também”, explica a psicóloga.
 
No entanto, o professor Clóvis de Barros Filho elucida que receber atos gentis pode não ser o suficiente para desencadear essa prática no outro. “É preciso uma formação moral que introjeta empatia, a capacidade de se colocar no lugar. Uma formação moral, que considera o bem de todos maior que o individual”. Mesmo que a empatia e cortesia pareçam ser de praxe, pode não ser tão simples enxergar sob essa ótica. “O princípio dominante em uma sociedade que todos competem é o egoísmo. O prazer próprio é priorizado em detrimento do outro, que é visto como entrave ao nosso sucesso”, comenta o professor.
 
Em meio às ações impensadas de gentileza na correria do dia a dia, o estudante andreense Allaf Barros, 22, sentiu-se recompensado pelo universo. Ele havia acabado de embarcar no trólebus, quando um casal chegou. Sem saber do funcionamento daquele transporte público, tentou pagar o motorista com dinheiro, o qual recusou, explicando que só aceitava bilhetes comprados. A mulher tinha um, mas o homem não. Ele havia desistido e ia andar até o Centro da cidade para encontrar a mulher. Allaf, no entanto, tinha um bilhete a mais. “Ofereci na hora. Eles aceitaram e tentaram me pagar, mas não aceitei. Para mim, não era nada demais”, relembra o estudante. Meses depois, a situação se repetiria, mas no lado oposto da moeda. Ao passar o cartão escolar no ônibus, foi negado por conta de bloqueio. Sem ter como voltar para casa, Allaf estava se preparando para longa caminhada quando alguém o chamou. “Ele perguntou como eu chegaria até o meu destino e respondi que andando. Ele insistiu e pagou a passagem para mim. Nessa hora, acreditei muito em carma: tudo o que você faz de bom volta para você”, comenta.
 

A monja Zentchu concorda e explica o conceito do carma. “É uma ação que gera outra. Se somos gentis, receberemos ações gentis. Se formos rudes, atrairemos ações, pessoas e situações rudes.” Uma das chamadas regras de ouro da filosofia budista, inclusive, é a de fazer o bem a todos os seres. A monja ainda complementa que a compaixão, uma vez manifestada, é “a maior força que faz com que ajudemos alguém que está precisando de nós”. O vice-versa, nestes casos nunca se encaixou tão bem. 




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