Em casa

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Miriam Gimenes

O jornalista, escritor e compositor Nelson Motta usou o período de isolamento para revisitar sua trajetória, que, para ele, contou muito com  a sorte
 
 
É da vista privilegiada de seu apartamento em Ipanema, no Rio de Janeiro, que o jornalista, compositor, produtor e escritor Nelson Motta ‘vê a banda passar’. Essa cena, retratada em foto que abre esta reportagem, pode servir de metáfora para o que tem sido, durante 76 anos, a vida deste paulistano com alma carioca, que por muitas vezes testemunhou, de camarote, grande parte do que de melhor foi produzido na cultura popular brasileira, principalmente no quesito  música. O que para alguns pode ser atribuído ao seu trabalho incessante no setor, o que não deixa de ser verdade, para ele é pura e simplesmente de responsabilidade de um fator: a sorte.
 
Tanto que acaba de lançar um livro em que até o título coloca este substantivo feminino como principal responsável pelas passagens mais incríveis de sua trajetória – De Cu pra Lua – Dramas, Comédias e Mistérios de um Rapaz de Sorte (Sextante, R$ 69,90, em média). Escrita mais da metade durante o isolamento feito em razão da pandemia pelo coronavírus, ao final de quase 500 páginas a única coisa que dá para pensar é que sua vida serviria, sem a menor dúvida, como base para um interessantíssimo roteiro de filme. 
“Isso começou quando eu comecei a estudar o fenômeno da sorte, esse foi o ponto de partida, e achei muito interessante. E ouvi isso a vida inteira, até meus pais falavam, que eu tinha muita sorte. Mas não foi só isso, o livro mostra bem. Sou igual a todos, tive momentos péssimos também, mas foi nos erros que eu aprendi. E para contar da melhor forma como a sorte funciona, achei que o melhor jeito era contar de que maneira ela age na vida de uma pessoa, que, no caso, foi a minha”, explica.
 
Para reviver sua trajetória, e munido de muita memória – uma de suas principais características, diga-se –, resolveu escrevê-la em terceira pessoa. Ganhou distanciamento do ‘cara sortudo’. “Assim podia brincar com o personagem, criticar, como fiz várias vezes, debochar dele, até elogiar. Me distanciei completamente.”
Motta lembra da infância, do incentivo dos pais para que pudesse ser um jovem livre; dos primeiros artigos de jornais que começou a publicar aos 20 anos; dos professores importantes que passaram pela sua história, entre eles o jornalista e integrante da Academia Brasileira de Letras Zuenir Ventura; dos inúmeros artistas que conviveu, como João Gilberto e Tom Jobim; além dos que produziu – Lulu Santos, Tim Maia, Marisa Monte, Elis. Motta também lembra dos amores e desamores, que não foram poucos. Entre os nomes com quem se relacionou teve a própria Elis, e também casamentos com a atriz Marília Pera e a papisa da moda, Costanza Pascolato.
 
Também trata, abertamente, sobre seu envolvimento com a droga, que o fez, por vezes, ir embora do Brasil para se livrar do vício. Diz que foi tranquilo escrever sobre o assunto, o qual sempre tratou com naturalidade. “Comecei a fumar maconha com 23 anos e, depois, sempre fumei na frente das minhas filhas (Nina, Esperança e Joana). Qual foi a consequência disso? Uma não fuma nada, outra fuma de vez em quando e outra fuma bastante. São três pessoas diferentes, não tem essa regra que é igual para todos. Esse troço (droga) não recomendo a ninguém, muito menos às minhas filhas, falo só por mim. Para outras pessoas funciona pessimamente mal, alguns perdem o rumo, ficam preguiçosos, desatentos. Para mim faz bem porque tenho uma puta disciplina de trabalho.”
 
 
Tanto tem que todas as vezes em que foi escrever algum de seus inúmeros livros costumava ficar sozinho, a exemplo deste último. “Gosto de ficar isolado, pelo menos durante um tempo para escrever. Vai mais rápido, fico concentrado. Neste caso a quarentena foi uma maravilha, porque não tinha nada que fazer, mas já tinha começado o livro. Escrevi mais da metade em dois meses e o resto do tempo fiquei entretido fazendo revisão com editora – passou por cinco –, com o checador de fatos, trabalhei a pós muito intensiva, a seleção das fotos, deu um trabalho danado.”
 
A publicação mostra também como o cenário musical mudou muito hoje em relação ao que Nelson ajudou a construir. Ele é  letrista de 300 músicas e sucessos como Dancin’ days e Como uma Onda. Mas o compositor não se faz nostálgico. Ele gosta mesmo é de ‘andar para frente’. 
“A qualidade da nossa música tem de ser vista em comparação com a música popular do mundo. Nenhuma é boa em si mesma, tem de ter comparação com coisas. É difícil ter um outro Chico Buarque, outro Bob Dylan. Vão aparecer coisas diferentes, a linguagem vai se transformando, as novas gerações só entendem a nova linguagem. As que entendem as antigas vão acabando,  morrendo, é muito difícil você comparar... A nostalgia é o caminho certo para depressão. E ainda temos grandes artistas de outras gerações que estão vivos e produzindo. A música brasileira não tem nada a reclamar”, analisa, acrescentando que Raul Seixas e Tim Maia, por exemplo, ficaram mais populares mortos do que vivos. 
É preciso apreciar o que se vê com outras lentes. “Acho que a gente tem de viver cada dia com o que tem. Veja hoje, você tem tudo, a maravilha do mundo digital,  você pode ouvir tudo. A MPB que veio até ontem é um tesouro incalculável. O Brasil continua um dos países com a MPB mais respeitada, principalmente pela sua diversidade. Tem Tom Jobim, Jorge Ben Jor, Caetano e tem Anitta. Não há nada a reclamar. Quanto à música que não se gosta não fale mal, apenas não ouça. Ninguém é obrigado.”
 
Foi esta filosofia que consolidou durante todo o período que atuou como crítico de música nos jornais. Segundo ele, por o espaço já ser tão reduzido, deve-se falar apenas do que vale a pena, do que tem de novo, e não utilizar as tão sagradas linhas para falar mal do trabalho alheio. 
 
Ainda que tenha ditado as diretrizes de quem gosta de música, e continua ditando – ele permanece com a coluna no Jornal da Globo, onde fala sobre música nacional e internacional – , Motta não se considera um influenciador.  “Acham que eu sou, mas não me comporto como um influenciador. Já desisti há muito tempo de convencer qualquer pessoa. Dou minha opinião sincera, responsável. Se concordar, ótimo; se não concordar, ótimo também. Esta é a minha posição. Trabalhei em jornal com coluna diária durante dez anos. Com censura, ditadura (chegou a prestar depoimento aos militares) e ter meia página de jornal era uma preciosidade em uma época de liberdade restrita, era um alto-falante. Simplesmente decidi que ia usar meu espaço muito bem estrategicamente, era muito precioso. Era uma prestação de serviço para o leitor.”
 
amadurecimento
Ainda no começo do livro Nelson conta a história de uma professora, a dona Silvia, que o repreendeu uma vez dizendo que jamais saberia escrever algo de qualidade. Ficou com raiva. Após já ser um jornalista consolidado, um dia estava caminhando pela Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, e avistou a mesma professora de longe. “Foi bom que eu percebi ali que havia amadurecido. A vi pisando duro, do outro lado da calçada. Até pensei: ‘Vou dar um susto nela’. Mas daí refleti: ‘Coitada, está aí, aguentando aluno chato e eu aqui, feliz da vida. Vai em paz, minha filha.” Motta nem falou com ela. 
Muito dessa maturidade também se intensificou quando Nelson passou, recentemente, por um problema sério de fístula medular, o que o impossibilitou até mesmo de andar. Com a cirurgia, o medo era ficar paraplégico o que, ‘por sorte’ e tratamento médico adequado, não aconteceu. Foi neste período que encontrou o último e atual amor, a baiana Adriana Albuquerque. 
Questionado sobre o que, para uma pessoa que ‘curtiu a vida adoidado’, ainda falta, Motta responde, de pronto. “Viver até os 100, lúcido, senão seja lá o que Deus quiser. Não tenho medo de morrer.” Sorte é o que não dá para pedir, certo?
 
 

 




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