João Ramalho: mocinho ou vilão?

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Miriam Gimenes

Algumas certezas sobre a nossa história são passadas ainda no ambiente escolar. A principal delas é a de que Pedro Álvares Cabral, acompanhado de 1.400 homens, aportou na Ilha de Vera Cruz, em 22 de abril de 1500, próximo à região de Porto Seguro, na Bahia, e deu-se, então, o ‘descobrimento do Brasil’. Grande parte do que nos foi contado é baseada na famosa carta que Pero Vaz de Caminha mandou para Dom Manuel I, o rei de Portugal à época, relatando os detalhes da viagem, o primeiro contato entre os portugueses com os nativos e as impressões da terra que viria a ser colonizada.

Mas há uma outra carta que pode mudar o rumo de toda essa história: a de Privilégios, que data 3 de abril de 1487, concedida por Dom João II a João Ramalho, fundador português que auxiliou seus conterrâneos na ocupação do planalto paulista e na fundação da Vila de Santo André da Borda do Campo. Nela, o português é nomeado cavaleiro do rei.

O documento, cujo original está no Arquivo Nacional Torre do Tombo, em Portugal, mostra que, ao contrário do que muitos historiadores afirmam, que ele teria nascido em 1493, certamente chegou a este mundo muito antes disso. E mais: outros registros no Museu de História de Vouzela, cidade onde Ramalho nasceu, dão conta de que ele teria vindo antes de Cabral para terras brasileiras.

Foi isso o que descobriram Andreia de Jesus Cintas Vazquez e Damiana Rosa de Oliveira ao pesquisarem sobre a história do tradutor e do intérprete no Brasil. Representantes do ofício, elas se interessaram em se aprofundar no assunto para escreverem o livro A Fantástica História (Ainda não Contada) da Tradução no Brasil (Transitiva). “Queríamos mostrar que o tradutor, apesar de nunca lembrado, sempre fez história”, diz Damiana.

E a surpresa das autoras se deu ao montar a linha do tempo com a trajetória da tradução no País. Elas iniciaram a pesquisa com a pergunta: ‘Quando os portugueses chegaram ao Brasil, como eles conversavam com os índios?’. “Começamos a procurar nos livros de história para achar um sinal e percebemos que Portugal planejou muito bem essa colonização no Brasil, que não foi uma coisa por acaso, que eles estavam estudando há tempos como iam fazer isso. Perceberam, inclusive, que se tinha um trato com a língua local nas colônias da África, as relações econômicas eram melhores. E tinha de ter alguém aqui também.”

Encontraram, então, relatos e cartas que descreviam João Ramalho, como um ‘língua’ no País, ou melhor, intérprete, e que, junto a Bartira, a filha do cacique Tibiriçá com quem se casou, ajudou portugueses e índios a se comunicarem à época. Só não acharam ao certo, no entanto, a data em que ele havia chegado aqui. “Havia dúvidas do próprio descobrimento do Brasil. Foi Cabral? Alguns diziam, ‘não, não foi’. Então a gente começou a puxar o fio”, lembra Andreia. E, como tudo isso envolvia a história da região, que anda paralelamente à do português, e à trajetória da tradução, as duas começaram a aprofundar as pesquisas acerca do bandeirante.

Como o livro tinha prazo para ser entregue, fecharam com as informações que tinham e Andreia foi para Vouzela, em Portugal. Uma vez em solo português, a pesquisadora reuniu documentação, com o auxílio da historiadora local, que até então era inédita, inclusive nos centros de memória de Santo André e São Bernardo. “Entre os documentos descobri um livrinho distribuído nas escolas secundárias de Vouzela que conta a história de João Ramalho. E nele há um trecho de uma carta de Privilégio concedida ao português que o nomeia como cavaleiro do rei. Isso é uma prova de que ele não era um degredado, como muito se falou por aí”, ressalta Andreia. Elas receberam cópia da carta original semana passada.

E, afinal, que resposta chegaram à questão que dá título a esta reportagem? “Existiam duas vertentes, as que amavam e as que odiavam o João Ramalho. Mas a minha ideia é: como qualquer ser humano, ele não é vilão nem mocinho. Era um homem que se adaptou a algumas condições e, para os portugueses, era um bandeirante brilhante, porque fundou as cidades e foi primordial para a colonização. Ele era muito respeitado nas tribos e um intérprete importante”, finaliza Damiana. 

PAI DO GRANDE ABC

É de conhecimento público, principalmente no distrito de Viseu, onde fica Vouzela, em Portugal, que João Ramalho é filho de João Velho Maldonado e de Catarina Afonso Valbode. Sabe-se também que se casou com Catarina Fernandes das Vacas, a quem deixou grávida assim que partiu rumo ao Brasil, com data ainda a ser confirmada.

E existem, segundo a responsável pelo Museu Municipal de Vouzela, Maria Teresa Ferreira e Costa Tavares, três versões para sua partida rumo à Ilha de Vera Cruz: uma delas é que teria feito parte da armada de Pedro Álvares Cabral, a outra é que teria cometido algum crime em Vouzela e, portanto, teve de ir embora como degredado e, por fim, se aponta a possibilidade de ter se oferecido voluntariamente para fazer a expedição de conquista de novas terras em missão especial ordenada pelo rei. “Não existe nada que documente nenhuma das hipóteses. O fato de ter vivido e acabado por morrer aí (Brasil) deve ter o afastado um bocado de sua terra natal (Portugal). Alguns documentos que encontramos na Torre do Tombo, trocados entre o Padre Manuel da Nóbrega (1517-1570) e outros jesuítas, mostram que ele tentava saber se a mulher (Catarina das Vacas) estava viva. Presumo que era para regularizar a situação dele no Brasil com a índia”, analisa Maria Teresa em entrevista ao Diário.

A especialista na história local, no entanto, ressalta que a carta de Privilégio, que data 1487 e o nomeia cavaleiro do rei, reforça a ideia de que ele teria vindo em missão especial para o Brasil. “Tudo é possível e ele tinha um espírito aventureiro. Desbravar era algo que ia agradá-lo.” Ela explica que antes do Tratado de Tordesilhas, assinado por Portugal e Espanha em 1494 e que dividia as ‘terras descobertas e por descobrir’, foram feitas algumas expedições a fim de reconhecimento de territórios. “Esse título (a carta) não era concedido a qualquer um. O rei dava o título a quem lhe prestava serviços, a pessoas da sua confiança. Acho que essa tese (de que teria vindo antes de Cabral para cá), embora não reúna documentação suficiente para comprová-la, pode ser viável, pode ter alguma consistência sim”, destaca a historiadora.

Um dos documentos que foram trazidos pela tradutora Andreia Vazquez em sua pesquisa em Vouzela data de 1956 (veja reprodução abaixo), e reúne estudo feito pelo português António Lopes da Costa, já falecido, e depois adquiridos pela Câmara local. Nele, o pesquisador cita o historiador Alexandre Herculano (1810-1887), que avaliza a versão de que João Ramalho teria feito a viagem para o Brasil em segredo. “Foi demonstrado pelos historiadores brasileiros que, quando ali chegou Pedro Álvares Cabral e outros, já lá se encontrava o Fidalgo da Casa Real, o nosso ilustre vouzelense João Ramalho e mais alguns portugueses.” E mais: “Chegado a Santo André da Borda do Campo, por alturas de 1492/1493, nasceu-lhe em 1503 o primeiro rebento, que batizou com o nome de André.” Só com Bartira, ao que se tem registro, o bandeirante teve 12 filhos.

PERPETUAR

As cópias dos documentos que foram achados por Andreia Vazquez e Damiana Rosa de Oliveira já estão no Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa e na Memória de São Bernardo. “A ideia é que quando não estivermos mais aqui, essa pesquisa continue sendo feita. É a história de nossa região, que foi importantíssima para o Brasil”, analisa Damiana de Oliveira.

O responsável pela memória de São Bernardo Jorge Joaquim Magyar ficou muito feliz com o resultado da pesquisa delas, que deve ter continuidade no próximo ano. “Há uma grande possibilidade de ele ter chegado antes de Cabral sim, isso não deve ser descartado.” Segundo ele, a carta de Privilégio muda pelo menos uma das vertentes da possibilidade de sua vinda para cá. “Muito se falou que ele era até um bandido, degredado, e, na verdade, por essa carta, vemos um reconhecimento. Essa carta é real, é um documento importante que elas localizaram lá e põe por terra a ideia de ele ser um mau-caráter, uma pessoa que tenha cometido delitos”, analisa o memorialista.

E não dá para julgar, acrescenta, a conduta do bandeirante. “Tem de contextualizar o momento em que ele viveu e a precariedade da situação que ele se encontrava. Era um local difícil, a relação com os indígenas não era tão tranquila. Eles guerrilhavam, tinha antropofagia. Tudo isso fazia parte do cotidiano e é claro que em alguns momentos ele se molda a essas práticas. Tenho dificuldade de julgá-lo com os olhos e valores éticos que temos hoje”, finaliza.

Bartira é considerada ‘princesa’

Na maioria dos registros a que se dá conta, a índia Bartira, filha do cacique Tibiriçá com a índia Potira, aparece apenas como coadjuvante na história de João Ramalho. “A gente estuda na escola que Bartira é a mulher do João Ramalho e ponto. E, de repente, a gente começa a descobrir uma mulher inteligente, guerreira, muito admirada na época, muito diplomática, que falava muitas línguas. Encontramos um pesquisador de Portugal que escreveu um artigo falando sobre a Bartira, que, sem ela, provavelmente não existiria São Paulo, dada a importância que ela teve nessa época”, diz a tradutora Damiana Rosa de Oliveira. 

Ela e Andreia Vazquez pretendem reunir mais documentos a fim de se aprofundarem na história da índia. “Seria muito mais bonito se as futuras meninas crescessem com a ideia de uma Bartira empoderada, do que essa história da mulher de João Ramalho apenas”, acrescenta Damiana. 

Um dos documentos encontrados por Andreia em Vouzela se refere a Bartira como ‘princesa Isabel’ – já que ela recebeu o nome cristão de Isabel Dias. “Quando ela se converte começa a entender que era casada com um homem casado e o abandona. O José de Anchieta diz em uma de suas cartas que ela dava a vida pelo Pateo do Colégio, era uma ‘cristã valorosa de ir à missa’. Ele também se refere à data da morte da Bartira como ‘o dia mais triste da Vila de Piratininga’”, acrescenta a tradutora. A ideia dela e de Andreia é de fazer um livro que conte a fundo a história daquela que seria a primeira princesa do Brasil.




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