Concurso definiu letra em meio aos projetos polêmicos apresentados ao governo
Mão direita sobre o peito, braço esquerdo para trás, posição de imponência. É assim que nos preparamos para cantar a plenos pulmões o Hino Nacional do Brasil. Mas você conhece a história de uma das músicas mais emblemáticas da nossa trajetória enquanto Nação? Oficialmente, a canção teve duas versões de letras e duas melodias, o que não impediu que numa época em que o País vicejava mudanças, muitos artistas e escritores se aventurassem na tentativa de traduzir os ideais no eu-lírico do povo. Entre um acorde e outro, as linhas políticas do Brasil eram costuradas no grande tecido do tempo.
Tudo começa com o Hino à Independência, que historiadores alegam ter sido composto pelo próprio dom Pedro 1º quando este era apenas o príncipe regente. Evaristo da Veiga, importante jornalista político e poeta, escreveu os versos que seriam entoados pela sociedade da época numa entusiasmada Proclamação da Independência em 1822, há 200 anos. A letra reflete bem o sentimento de luta pela liberdade, com o famoso trecho: “Ou ficar a Pátria livre, Ou morrer pelo Brasil.”
Não se sabe exatamente quando, mas pouco tempo depois desse momento, o maestro Francisco Manuel da Silva começa a compor a marcha mais adequada que daria um corpo heroico e grandioso para a canção, complementando com maior destreza musical a primeira versão da melodia. Esse arranjo foi o mais emblemático e célebre, tanto que se manteve ao longo dos anos, mesmo quando as letras foram descartadas.
Nesse momento, para acompanhar a majestosa música de Francisco, e também o contexto político sensível entre as turbulências do Império e as maquinações de uma República, surgiram diversas propostas de letras que ou ofendiam muito os colonizadores, ou os exaltavam, daquele jeitinho bem polarizado que já conhecemos.
Algumas letras eram até mesmo polêmicas, como a de 1831, do desembargador Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, cujas estrofes marcavam a despedida de dom Pedro 1º e ofendiam os portugueses: “Os bronzes da tirania já no Brasil não rouquejam, os monstros que o escravizam já entre nós não vicejam.” Essas sugestões bem particulares circulavam os jornais e folhetins, mas não eram formalmente adotadas.
“Esses hinos tinham uma finalidade de ferramenta na luta política, eram compostos para exaltar sentimentos e posições”, explica o historiador João Paulo Pimenta, professor do Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo). “As pátrias são amparadas em símbolos e os hinos são uma parte desse arcabouço que materializam e consolidam nações como grupos sociais estáveis.”
Com o golpe de 1889, que derrubou a Monarquia e instaurou a República, os hinos de dom Pedro e de Francisco soavam como ruínas de um passado que não mais representava a realidade. Foi aí que o recém governo, em meio aos desmontes de símbolos monárquicos, decidiu que o Brasil teria um novo hino; um concurso foi realizado e músicos de todos os cantos foram convocados para criar a nova melodia, que já tinha até letra.
Na ocasião, a do Hino da Proclamação da República, escrita por José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque; em suas estrofes, ele dizia: “Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre País... Hoje o rubro lampejo da aurora acha irmãos, não tiranos hostis.” Não se sabe exatamente as reviravoltas que teriam conduzido a decisão final, mas apesar do concurso, no dia 20 de janeiro de 1890 ficou definido que o Hino Nacional do Brasil permaneceria sendo o de Francisco Manuel, e sem letra.
Por pouco mais de 30 anos, a melodia de Francisco foi regida por uma orquestra, mas sem palavras que a carregasse para a boca dos brasileiros. O que mudou com a chegada da comemoração do centenário da Independência do Brasil.
Havia uma certa pressão de autoridades como o maestro Alberto Nepomuceno, diretor do Instituto Nacional de Música, para que houvesse um poema que pudesse ser cantado e aprendido pelas pessoas. A partir de diversos debates acerca da temática, o então poeta Joaquim Osório Duque-Estrada foi convidado a criar uma base que serviria de exemplo para que, em um eventual concurso, os escritores pudessem seguir uma diretriz no acompanhamento da peça, encaixando a métrica com as notas e o tom no qual deveria ser cantado. Não obstante, um inspirado Duque-Estrada entregou algo muito além de um mero rascunho:
“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas, de um povo heroico o brado retumbante. E o sol da liberdade, em raios fúlgidos, brilhou no céu da pátria nesse instante.”
O concurso foi realizado, mas para o júri, nenhuma das letras estava à altura dos gloriosos versos que tinham em mãos. A decisão final não surpreenderia e Duque-Estrada entraria para a história como o compositor oficial.
Em 6 de setembro de 1922, há 100 anos, o Hino Nacional do Brasil finalmente nascia após um casamento perfeito de sonoridade e canto, tornando-se símbolo da pátria, transmitido de geração para geração, ninando, por fim, uma nação que, de fato, não foge à luta.
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