Um dos principais muralistas do País, Eduardo Kobra, que acaba de finalizar uma obra ‘autobiográfica’ em São Paulo, coloca a fé e suas emoções na arte
Para quem gosta de arte de rua, uma coisa é certa: basta passar os olhos por qualquer obra do muralista paulistano, Eduardo Kobra, para rapidamente identificá-la. A mais recente, finalizada em meados de novembro, no Minhocão, em São Paulo, no entanto, é onde está a sua melhor tradução, segundo ele. O trabalho, com 33 metros de altura por sete metros de largura, na empena de um prédio situado à Rua Traipu, ganhou o nome de A Mão de Deus – e isso nada tem a ver com o gol feito pelo argentino Diego Maradona, morto recentemente. “O mural é inspirado em um momento muito difícil para mim, que começou a ser superado quando senti a mão de Deus. Foi algo que me ajudou e que me ampara até hoje”, diz.
Na imagem, a 29ª que ele cria no País – tem outras 38 no Exterior –, a força divina salva uma pessoa do afogamento. Kobra diz que, por muito tempo duvidou da existência de Deus, o que o atrapalhou muito. Mas foi ao notar o valor da fé que uma porta se abriu em sua vida. “Quando a gente chega no fundo do poço, o único lugar que a gente tem é olhar para cima. E foi o que eu fiz. Olhei para cima e falei: ‘Olha, depressão, você não pertence a mim’. ‘Ansiedade, eu não quero viver isso.’ Quando parei de beber, achei que tinha algo melhor para mim do que isso. Quando passei a respeitar minha família e minha esposa, percebi que isso me faria bem. E a cada mural que coloco nas ruas é a esperança que brota primeiro no meu coração, depois procuro levar isso para cidade e passar isso para as pessoas”, conta.
Mais do que pensar que material vai usar, as cores que combinam ou a técnica a ser exposta, o muralista se preocupa com a mensagem. “Para mim hoje a pintura não é mais a parte importante. O que importa é o que vai ser pintado, o porquê vai ser feito, tem de ter profundidade. Pintar é uma técnica que se aprende na escola e criar é algo que vem do coração e de Deus a inspiração.” Em abril, o muralista fez o Coexistência, em que homenageou as vítimas do coronavírus ao redor do mundo. Nele, crianças de várias religiões – cristianismo, budismo, judaísmo, islamismo e hinduísmo –, todas de máscara, rezam pedindo a cura para a Covid-19. Uma serigrafia da obra foi sorteada entre as pessoas que fizeram doações para pintá-la e, com o valor arrecadado, foram produzidos e distribuídos 16.620 kits.
TRAJETÓRIA
Kobra é um expoente da neo-vanguarda paulistana. Começou como pichador e grafiteiro, por volta de 1987, no bairro do Campo Limpo, seguindo o movimento hip hop. Com o tempo ganhou São Paulo, abriu o Studio Kobra, em 1995, inspirado em muitos artistas, especialmente os pintores mexicanos e norte-americanos.
Ele é autor de projetos como Muro das Memórias, em que busca transformar a paisagem urbana através da arte e resgatar a memória da cidade; Greenpincel, onde mostra (ou denuncia) imagens fortes de matança de animais e destruição da natureza; e Olhares da Paz, em que pinta figuras icônicas que se destacaram na temática da paz e na produção artística, como Nelson Mandela, Anne Frank, Madre Teresa de Calcutá, Dalai Lama, Mahatma Gandhi, Martin Luther King, John Lennon, Malala Yousafzai, Maya Plisetskaya, Salvador Dali e Frida Kahlo.
Há pouco, nas comemorações dos 80 anos de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, em 23 de outubro, entregou o mural Coração Santista. Em 800 metros quadrados, o artista criou quatro cenas, todas situadas dentro dos arcos (ou círculos) das muretas de Santos, um dos mais conhecidos símbolos da cidade: Pelé (o grande homenageado do mural), o Bonde, a Bolsa do Café e Um Estivador no Porto de Santos.
E ele fez essa e todas as outras, é claro, colocando sua impressão e emoção pessoal. “A minha arte é o que eu sou. Não há diferença na minha vida. Cada vez mais coloco coração, emoção, sentimentos. Se eu estou pintando algo de Deus é porque acredito em Deus. Se pinto algo de tolerância, é porque estou vendo que a intolerância esta aí. Se estou falando da união dos povos é porque eu gostaria que as pessoas se respeitassem, respeitassem a cultura uma das outras. Me inspiro em tudo isso, na vida real, nas coisas que estou vendo (para fazer as obras). Quando vejo um animal preso em um zoológico, em parque de diversões, uma baleia ser morta, o tubarão morrer para tirar a barbatana e fazer uma sopa, isso é um absurdo. Nós temos de mudar muito. Eu, pessoalmente, tenho muito a desenvolver, entender e mudar velhos conceitos. O mundo é muito maior do que eu, meu carro, meu celular e minha conta bancária. Existe muito mais a ser feito”, analisa.
Em setembro, o artista urbano finalizou um mural dentro da Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo. O mural faz parte de um projeto idealizado por ele para a revitalização da escola, onde ocorreu um massacre em março de 2019, quando dois ex-estudantes armados invadiram o espaço. Além do mural pintado por Kobra dentro do pátio da escola, alunos participaram de um concurso por meio da Secretaria de Estado da Educação, com o tema Paz nas Escolas e enviaram desenhos. As obras escolhidas foram pintadas no muro em frente à fachada da escola. Para as pinturas nas outras três laterais do muro, foram convidados diversos artistas urbanos. É isso que move o artista. Assim segue seu sonho de ‘evoluir como ser humano’.
Por isso ele não para. Além de fundar seu instituto, que já está com a documentação toda pronta, onde pretende ajudar jovens da periferia a ter mudança de vida por meio da arte, o muralista está cheio de convites para mostrar ainda mais seu talento no Exterior. Em breve deve fazer um mural em uma estação de trem na França – foi em Lyon o seu primeiro mural fora do Brasil –, a fachada do World Trade Center, em Nova York, além de continuar com a restauração de murais em São Paulo.
E você acredita que seja um dos principais expoentes de sua arte no País? “Eu não me considero um dos maiores muralistas, sou apenas uma pessoa que continua batalhando pelo que acredita. Acordo todos os dias desempregado, tenho de batalhar pelo meu espaço, meu trabalho. A arte tem o lado glamuroso, mas tem o também o lado de subir no andaime, esforço físico, dedicação. Pesquiso, não me acomodo, estou sempre buscando conhecimento. É ele que nos dá asas para chegar em lugares mais altos. Quando entro na Capela Sistina (em Roma) e olho para cima, eu vejo que sou um bebê, um principiante. Tem muito artista no mundo. Sou um privilegiado por estar tendo cada dia mais o apoio das pessoas para seguir minha trajetória, mas em relação à arte eu sou mais um e estou batalhando por isso. Vou seguir assim até o último dia da minha vida até mesmo como um ativista neste segmento.” Ajuda divina não faltará, com certeza.